ALÉM DOS MUROS: PUNIÇÃO, CUIDADO E A ESTIGMATIZAÇÃO VIVENCIADA POR PESSOAS EM SOFRIMENTO PSÍQUICO.

  


Em análise de leituras sobre o surgimento da loucura, é possível perceber que a sociedade por muito tempo pratica o que pode ser chamado de “expurgo dos loucos”. Enxergadas como pessoas perigosas, essas eram banidas da cidade, porém não tinham um outro local previamente definido para habitar, sendo condenadas a andar de cidade em cidade ou colocadas em um navio sem rumo. Na idade Média, as pessoas com transtornos mentais foram sendo alocadas em hospitais ou asilos, em conjunto com todas outras pessoas que eram consideradas inválidas, pode-se mencionar, moradores de ruas, prostitutas, e portadores de infecções sexualmente transmissíveis.

Norteado sobre a égide do capitalismo, princípio que rege até os dias atuais, fasta-se as pessoas com sofrimento e/ou adoecimento psicossocial e todos os que não se encaixavam nos padrões de produtividade burguesa do convívio em sociedade, sob a justificativa da segurança social. A partir do século XVII houve a criação e posteriormente uma grande expansão dos chamados hospitais psiquiátricos e manicômios, antes Casas de Internamento, conforme abordado de forma notável pelo filósofo e historiador Michel Foucault. (Castiglioni, 2019).

Inicialmente, a ideia desses espaços pautava-se em uma função disciplinadora, com o intuito de que houvesse uma “reeducação” no comportamento destes. No entanto, a proposta que mantinha o respeito no cuidado foi-se esvaziando. Com um novo caráter corretivo, as disciplinas utilizavam da imposição de ordem institucional, estudos apontam que no século XIX “o tratamento ao doente mental incluía medidas físicas como duchas, banhos frios, chicotadas, máquinas giratórias e sangrias.” (CCS Saúde).

Ainda acerca do tratamento designado as pessoas com transtornos mentais na época, Lima vai além ao discorrer que: “Durante o século XVII adotou-se maior severidade no trato com os doentes mentais, espécie de disciplina total. Através de castigos físicos, ameaças e outras formas de contenção, buscava-se inserir no sistema manicomial a ideia do medo e castigo, entendendo que desta forma os loucos poderiam viver em grupo” (Lima, 2016,pág 19). “O louco infrator” Ao abordar sobre transtornos mentais e criminalidade, é importante compreendermos o início e mudanças durante essa trajetória e onde estamos atualmente. Será que chegamos no cuidado ideal? Qual a linha entre a punição e o cuidado? Com a inauguração do Hospício de Pedro II, os “loucos” foram proibidos de perambular na cidade, e também não mais poderiam ser enviados ao Hospital Santa Casa. Essa medida funcionava como uma proteção da segurança social à família real e à sociedade brasileira. (Portocarrero, 2002 apud Castiglioni, 2019).

(Figura 2: Representação de um manicômio)


Faz-se válido destacar que essa forma de abordagem as pessoas em sofrimento psíquico ocorreu diante da promulgação da Lei 16 de dezembro de 1830, onde em seu primeiro capítulo discorre sobre o acolhimento dos loucos infratores: “Os loucos que tiverem cometidos crimes, serão recolhidos às casas para eles destinadas, ou entregues às suas famílias, como ao Juiz parecer mais conveniente” (BRASIL,1830)

Sobre a questão da inimputabilidade penal, ocorreram diversas mudanças, como no Código Penal de 1890, no entanto todos eles reforçaram a ideia de que a sociedade só seria defendida por meio da exclusão dos considerados loucos. Nos dias atuais, o Código Penal em seu Art. 26 descreve que: “É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.” (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

Destaca-se, portanto, o funcionamento dos Hospitais de Custódia, conhecidos também como Centros Prisionais de Saúde. Os dispositivos mencionados funcionam hoje como hospitais, na medida em que se propõe a tratar os indivíduos com sofrimento e/ou adoecimento psicossocial, mas também funciona enquanto prisão. Esses assistidos estão cumprindo uma medida de segurança por cometer um ato ilícito, ainda que sem entendimento do caráter do mesmo.

A problemática é inserida diante da reprodução da cultura manicomial e também prisional que esses espaços reproduzem, pois apesar da proposta terapêutica, as atuações e intervenções são marcadas pela ambivalência, onde os profissionais da saúde tratam como pacientes e os agentes de segurança como presos tradicionais, o que pode representar o que Carrara (1998) nomeia como: "o modelo jurídico-punitivo e o modelo psiquiátrico-terapêutico". Prevalecendo a ideia de “periculosidade do louco” e práticas de exclusão social e isolamento das pessoas em sofrimento psíquico.

Atualmente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Ministério da Saúde buscam atuar juntos na implementação do fechamento gradual dos Hospitais de Custódia, ação que está prevista há mais de 20 anos na Lei Antimanicomial (Lei n. 10.216/2001). O objetivo é, portanto, fortalecer os espaços de cuidado adequado para aqueles que segundo a lei são considerados inimputáveis, o que requer um diálogo contínuo e permanente com a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).

É notável o progresso alcançado até o presente momento, no entanto, o percurso a ser trilhado ainda demanda esforços significativos para que o cuidado em saúde mental seja plenamente implementado de maneira eficaz. Texto por: Aline Nascimento.

Referências:

ALVERGA, A. R.; DIMENSTEIN, M. A reforma psiquiátrica e os desafios na desinstitucionalização da loucura . Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.10, n.20, p.299-316, jul/dez 2006. BRASIL. [Código Penal (1830 )].CÓDIGO CRIMINAL DO IMPERIO DO BRAZIL, [1830]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm. Acesso em: 31 jun. 2024. BRASIL. [Código Penal (1984)]. Lei de Execução Penal, [1984]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1980-1988/l7209.htm#:~:text=Inimput%C3%A1veis-,Art.,de%20acordo%20com%20esse%20entendimento.. Acesso em: 01 jul. 2024. CASTIGLIONI, LUCIANE. Transtornos mentais na criminalidade: análise quantitativa do sistema carcerário e de custódia no Brasil, prevalência de doenças psiquiátricas e perfil destas populações. Tese( Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde) - Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, São José do Rio Preto. 98 P. 2019. CCS SAÚDE - Programa De Volta Para Casa - A reforma psiquiátrica e a política de saúde mental. Disponível em: <http://www.ccs.saude.gov.br/memoria%20da%20loucura/vpc/reforma.html> COSTA, et. al, A reforma psiquiátrica e seus desdobramentos: representações sociais dos profissionais e usuários da atenção psicossocial. Psicologia e Saber Social, 5(1), 35-45, 2016. Lima, Reinaldo. Entre a punição e o tratamento: Os “loucos infratores” no Brasil.. Monografia (Curso de Especialização em estudos de criminalidade e segurança pública) -Universidade Federal de Minas Gerais,Belo Horizonte. 86 P. 2016. MAGALHÃES, R; ALTOE, S. Dentro e fora: tecendo reflexões sobre um hospital de custódia. Pesquisa prát. psicossociais [online]. 2020, vol.15, n.1, pp. 1-13 PORTAL CNJ; Benefícios e Auxílios [Resolução N. 102 CNJ]. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/transparencia-cnj/gestao-de-pessoas/beneficios-e-auxilios/#:~:text=A%20resolu%C3%A7%C3%A3o%20n.,t%C3%ADtulo%2C%20colaboradores%20e%20colaboradores%20eventuais.. Acesso em 01 jul, 2024.


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