O PROCESSO DE REVITIMIZAÇÃO NOS CRIMES SEXUAIS CONTRA AS MULHERES

 O PROCESSO DE REVITIMIZAÇÃO NOS CRIMES SEXUAIS CONTRA AS MULHERES 






A escolha do tema para dar início a essa coluna, sem dúvidas, foi um desafio. O título Feminismo e Direito é extremamente abrangente.


Em busca de refletir e pontuar temas que perpassam esses conceitos e fazem sentido com aquilo que o Além das Grades é enquanto grupo, acredito que começar discutindo sobre o processo de revitimização nos crimes sexuais contra as mulheres seja crucial no cenário legislativo que o Brasil se encontra.

 

Como o movimento feminista se insere nesse debate?


Foi o feminismo que trouxe para o conjunto do movimentos das mulheres brasileiras os novos temas da agenda penal como a discussão do aborto, da violência doméstica, do feminicídio, denunciando as diversas formas de discriminação de gênero. Foram esses movimentos também que propuseram a descriminalização do adultério e da sedução, por exemplo.


Foi o feminismo que tornou visível, enfim, uma das dimensões da opressão feminina que atinge proporções alarmantes no país, a saber, as diversas formas de violência sexual. Particularmente importante nesse contexto foi a criação, em 1984, das Delegacias de Mulheres, para receber queixas específicas de violência de gênero, pois elas foram mostrando que os maus tratos e a violência sexual contra elas (assédio,estupro e abusos em geral) ocorriam muito mais frequentemente do que se pensava.


Se qualquer indivíduo encher uma sala com várias mulheres diferentes e perguntar a elas qual o crime têm mais medo, pode ter certeza que a maioria irá responder sem hesitar que o crime que causam-lhe maior medo são os crimes sexuais. Infelizmente, a dor de ser vítima desse tipo de crime não acaba com o fim do ato ilícito, mas é prolongado durante todo o processo, no inquérito, na instrução, no julgamento... 


A revitimização, também conhecida como vitimização secundária, é o fenômeno que agrava ainda mais o sofrimento das mulheres vítimas de crimes sexuais. Isso ocorre quando, ao tentar buscar ajuda ou justiça, a vítima tem que lidar com novas formas de violência, seja por parte do sistema judiciário, da mídia ou da sociedade. 


O sistema legal, muitas vezes, perpetua a revitimização. As vítimas são frequentemente submetidas a interrogatórios invasivos e repletos de julgamentos de modo a intensificar o trauma sofrido. Em um estudo de Gabriela Perissinotto de Almeida e Sérgio Nojiri (2018), foi observado que decisões judiciais recorrentemente refletem vieses e estereótipos de gênero, resultando em sentenças que desconsideram a gravidade da violência que as vítimas foram acometidas. Norberto Avena (2018) também destaca a importância de um processo penal que respeite a dignidade da vítima, evitando práticas que possam causar mais sofrimento. 


Uma das grandes estratégias utilizadas para culpabilizar a mulher é a desqualificação da vítima de violência sexual. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por unanimidade, proibir essa prática em audiências judiciais e investigações. 


A conduta - que se caracterizava pelo apelo de desqualificar a vítima utilizando de referência a sua vida sexual - não poderá mais ser usada como argumento das defesas de acusados dos crimes sexuais, nem por policiais, promotores e juízes. Sem dúvidas um avanço, mas ainda tem muito a ser feito. 


Saindo do âmbito das instituições de justiça, a mídia e a sociedade também contribuem com a perpetuação do fenômeno da vitimização secundária. A mídia desempenha um papel crucial na formação de opinião pública das massas. A cobertura midiática que enfatiza a vida pessoal da vítima ou questiona suas ações pode reforçar estereótipos e preconceitos, dificultando ainda mais sua recuperação (Borges & Carvalho Neto, 2009).


Infelizmente, com reforço do preconceito concebido por reportagens sensacionalistas e pela exposição excessiva das vítimas, percebe-se que a invasão do corpo e da liberdade de uma mulher também se manifesta para além do crime. Inúmeras vezes, indagações sobre o tipo de roupa que as vítimas estavam usando no momento que foram agredidas ou sobre o seu comportamento são levantadas. De vítimas, passam a ser as responsáveis pelo abuso sofrido. Estudos como o de Marcela Zamboni (2019), mostram que a construção da verdade em casos de estupro é frequentemente influenciada por esteriótipos, descredibilizando as vítimas. 


Consequentemente, a revitimização pode levar ao isolamento social entre outras inimagináveis dificuldades perante a sociedade. Já no cenário jurídico, a desconfiança no sistema pode desencorajar outras vítimas a denunciar crimes de violência sexual perpetuando um ciclo de silêncio. Como destacado por Coulouris (2010), psicologicamente, as vítimas podem desenvolver transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão e ansiedade. Em outras palavras, as consequências atingem diferentes aspectos da vida de uma mulher que foi vítima de um crime sexual. 


Por fim, é indispensável lutar pela promoção de mudanças sistemáticas e culturais para criar um ambiente mais justo, acolhedor e mais seguro para todos. Inquestionavelmente, a revitimização das mulheres em casos de crimes sexuais é um problema complexo que exige atenção e ação contínua.









REFERÊNCIAS 





ALMEIDA, Gabriela Perissinotto de; NOJIRI, Sérgio. Como os juízes decidem os casos de estupro? Analisando sentenças sob a perspectiva de vieses e estereótipos de gênero. Rev. Bras. Polít. Públicas, Brasília, v. 8, nº 2, 2018 p.825-853.


AVENA, Norberto. Processo Penal. 10ª Ed. Rio de Janeiro, Forense, São Paulo: MÉTODO, 2018.


BORGES, Paulo César Corrêa; CARVALHO NETO, Gil Ramos. Estudo comparado da tutela penal da liberdade sexual no Brasil e na Itália. Revista da EMERJ, v. 12, nº 46, 2009.


CNN Brasil. Por unanimidade, STF proíbe desqualificar vítima de violência contra mulher em processos. CNN Brasil, 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/por-unanimidade-stf-proibe-desqualificar-vitima-de-violencia-contra-mulher-em-processos/. Acesso em: 21 jun. 2024.


DE ANDRADE, Vera Regina Pereira. Criminologia e feminismo: da mulher como vítima à mulher como sujeito de construção da cidadania. Sequência: estudos jurídicos e políticos, v. 18, n. 35, p. 42-49, 1997.


ZAMBONI, Marcela. A construção da verdade em casos de estupro. Disponível em:  http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinppIII/html/Trabalhos/EixoTematicoD/afef8085cdb6f Acesso em: 21/06/2024.

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