Amor Fati

  Amor Fati



O renomado curta norte-americano “Dois estranhos” (2020), logo no seu início, põe em primeiro plano o quadro do personagem principal caracterizado como um rei. Com a tatuagem de uma coroa no seu braço, depois de uma boa noite de sono com sua companheira, Carter é um homem negro que se percebe realizado ao planejar seu dia com visitas a restaurantes novos e momentos afetivos com seu cachorro, mas o destino lhe aguarda…

Como uma mira apontada sem qualquer justificativa, o personagem é abordado por um policial, que delira com irregularidades no comportamento de Carter (Joey Badass), por mais íntegro que ele seja. No Brasil, a mira apontada, antes mesmo da abordagem, prefere pular para a etapa do gatilho, mas um ponto em comum entre esta situação nos dois países é posto em evidência: a própria mira, uma marca de nascença.

É com muita superficialidade que nossa compreensão sobre o mundo é feita, pois um ensino digno de aplausos para a mentalidade eugenista do século XIX se faz presente nos tempos de progresso que o século XXI prometeu trazer. O eterno Jorge Ben Jor, na música “Abenção  Mamãe, Abenção Papai” (1984), clamava por esta esperança:


Nasci de um ventre livre

No século XX

Eu tenho fé, amor e afeto

No século XXI

Onde as conquistas científicas

Espaciais, medicinais

A confraternização dos povos

E a humildade de um rei

Serão as armas da vitória para a paz universal

Todo mundo vai ouvir, todo mundo vai saber


Realmente, Ben, neste século entendemos o básico do elementar, mas tamanha superficialidade prejudica a distópica realidade. Os anacronismos presentes nas ações de controle social do Estado sobre a comunidade negra põem em cheque qualquer mito de democracia racial, sendo de praxe, como sempre tentam cobrir os noticiários, o caso dos “Dois estranhos”. Das abordagens absurdamente violentas, atentatórias ao princípio da dignidade humana e isonomia judicial do povo brasileiro, até as mortes, infelizmente banalizadas pelas criminosas operações policiais nas comunidades, percebemos um ciclo se repetindo.

Como um déjà vu, Carter, após ser morto pelo policial, revive esta mesma violência de diversas formas repetidamente. Sem a possibilidade de escolha entre o bem e o mal, oferecida pelo próprio Nietzsche quando foi abordado o assunto de eterno retorno no filme “Quando Nietzsche chorou” (2007), o personagem do curta está condenado, e isto é um fato não somente para ele, mas para todos os brasileiros de pele preta.

Para estes brasileiros, o eterno retorno não possui função reflexiva sobre a episteme de nossas ações enquanto seres vivos, mas sim possui um papel de condenar a viver com uma mira apontada, sempre na iminência do disparo. Para que ocorra a cortina de fumaça do devido processo legal das justificativas de controle social dos corpos negros, privacidades individuais e coletivas são rompidas, e o fim é sempre o mesmo. Na distopia, não há qualquer espaço para o diálogo, entendido que ambas as partes estão condenadas, uma para mirar e a outra para ser a mira. No fim do filme, somos convidados à reflexão de Carter sobre o Policial Merk (Andrew Howard), que representa toda a instituição: não somos tão estranhos assim.


Referências:

  • DOIS ESTRANHOS. Diretor: Travon Free e Martin Desmond Roe. Produção de Lawrence Bender. Estados Unidos. 2020.

  • JORGE BEN JOR. Abenção  Mamãe, Abenção Papai. 1984.

  • QUANDO NIETZSCHE CHOROU. Diretor: Pinchas Perry. Produção de Nu Imagee e Millennium Films


Roberto Moura Pereira

Graduando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e membro do Grupo Além das Grades


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