Por Uma Nova Política Criminal
O debate público brasileiro em torno da segurança pública é fortemente contaminado por pré-concepções com ampla penetração popular. Por vezes verdadeiros dogmas, tais inferências, sem quaisquer lastros em dados da realidade, continuam a guiar a política criminal brasileira por seu apelo junto ao eleitorado. Dessa forma, as discussões sobre política criminal e segurança pública fora do meio acadêmico, muitas vezes, fica restrito à proposição das mesmas soluções simplistas para problemas extremamente complexos. Enquanto isso, os dados de segurança pública não melhoram. Pelo contrário, a situação agrava-se à medida que uma política criminal pobre em análises e propostas acentua os problemas estruturais no Brasil.
Assim, a título de apresentação da coluna, nosso principal objetivo é o de abrir mais um espaço de debate público atento à complexidade da realidade brasileira, baseada em evidências e comprometido com os princípios democráticos, a fim de contribuir para o desenvolvimento de uma nova política criminal no país.
O problema da segurança no Brasil e em Pernambuco
Em nota divulgada à imprensa, a Secretaria de Defesa Social de Pernambuco trouxe uma série de apontamentos que nos fornece um ponto de partida para pensar uma nova política criminal e de segurança pública no Estado. Tem-se, assim, um ponto de partida para problematizar a segurança pública em Pernambuco, a partir de pronunciamento do próprio Estado.
Inicialmente, percebe-se que há desigualdades locais que, consequentemente, refletem em dados contrastantes. Recife, por exemplo, tem apresentado indicativos positivos em relação à quantidade de vítimas de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI): ocorreram 136 homicídios no primeiro trimestre na capital de Pernambuco, o que, embora seja inquestionavelmente um número alto, representa uma redução de 8,72% em relação ao mesmo período do ano passado.
Essa perspectiva de redução não se manifesta, por outro lado, no Estado como um todo. No âmbito dos CVLI, em todo o Estado de Pernambuco, os três primeiros meses deste ano apresentaram um aumento de 16,5% em relação ao ano precedente, atingindo 965 homicídios totais. Destaca-se, por sua vez, a maior incidência desses crimes em áreas específicas do Estado, como Cabo de Santo Agostinho e Ipojuca, local onde, em tese, a Operação “Porto Seguro” estaria atuando com o foco no combate ao tráfico de drogas, que é reportado como supostamente responsável pela motivação de 80% daqueles crimes.
De maneira irônica (e trágica), a Operação “Porto Seguro” parece refletir exatamente as contradições inerentes aos discursos mais populares de segurança pública. É que, no caso concreto, a Operação “Porto Seguro” tem sido apontada como uma operação policial repleta de violações a direitos fundamentais da população de Porto de Galinhas. Em nota, a Articulação Negra de Pernambuco ofereceu repúdio às operações policiais nos territórios das comunidades de Socó, Salinas e Pantanal, denunciando buscas domiciliares sem autorização, de dia e de noite; abordagens violentas nas ruas; e interrupção dos sinais de telefone e internet. Tais abusos e ilegalidades também foram noticiados pela imprensa alternativa (Marco Zero Conteúdo), alegando que “PM e tráfico impõem dupla lei do silêncio a moradores e comerciantes de Porto de Galinhas”. Assim, foi exposta a situação de completa anormalidade dentro dessas regiões onde “invasão a residências, agressão aos moradores, constrangimento público, violação da privacidade com policiais tomando celulares”.
Ao falar de segurança pública, portanto, é crucial questionar para quem ela se volta. O aumento do tráfico de drogas na localidade, reconhecido pelos cidadãos; desse modo, ensejou operações policiais que, pelo contrário, estão longe de impor qualquer ideia democrática de segurança. Impõe-se apenas um estado policialesco. Nessa sequência de ilegalidades, no dia 30 de março, Heloysa Gabrielle Fernandes Nunes foi baleada e morta por policiais militares. Embora chocante, a morte de Heloysa se soma às inúmeras mortes de crianças e adolescentes em operações policiais que são representativas da realidade da segurança pública no Brasil.
Dados mais localizados, são ainda mais estarrecedores. A Rede de Observatórios de Segurança considerou que Pernambuco é o pior lugar do Brasil para ser criança ou adolescente, apresentando os dados de que, em 2021, 8 crianças e 108 adolescentes foram baleados na Região Metropolitana do Recife. A Operação “Porto Seguro”, como se vê, não rompe com esse paradigma. Na realidade, sob o manto de combater às drogas, praticam-se ilegalidades. E, bem... o tráfico segue ocorrendo.
Carolina Costa Ferreira, em sua tese de doutorado, aponta que a política criminal é um mecanismo discursivo, social e político para: (i) identificar quais condutas merecem ser criminalizadas; e (ii) determinar as estratégias de aplicação do poder punitivo[1]. É certo, por sua vez, que todos os atores do sistema de justiça criminal fazem, efetivamente, política criminal, não se limitando apenas ao Poder Legislativo e aos processos de criminalização primária. Política criminal, assim, é composta por várias subseções. Política de segurança pública, dessa forma, também é parte da política criminal, quando há ênfase nas instituições policiais[2].
O problema é que a segurança pública no Brasil é permeada de discursos que não necessariamente se baseiam em evidências e dados. Via de regra, justifica-se a criminalização das drogas como proteção à saúde pública (STJ, RHC 35.920/DF), enquanto, em nome desse combate, defende-se operações policiais com altas taxas de letalidade. A violência, por sua vez, atinge uma parcela da população determinada. Alguns autores apontam que a seletividade seria “uma das partes de maior relevo da crise hodierna do referido direito penal”[3].
Ainda mais além, pode-se dizer que a seletividade é, precipuamente, elemento constitutivo e definidor das políticas de segurança pública no Brasil. Assim, ao definir “estratégias de aplicação do poder punitivo”, o Estado não poderia prescindir de análises profundas a respeito dos impactos que nossas políticas de segurança pública causam à vida da população, especialmente a população preta e periférica. O discurso público, entretanto, desconsidera isso. Muitas vezes o que se vê é a ideia de um criminoso que precisa ser, a todo custo, combatido.
O criminoso, assim, é um status atribuído ao indivíduo. Na realidade, ele é atribuído a certos indivíduos, um bem negativo, “distribuído desigualmente segundo a hierarquia dos interesses fixada no sistema socioeconômico e segundo a desigualdade social entre os indivíduos” [4]. Desse modo, se é verdade que vários grupos sociais podem delinquir, poucos são efetivamente escolhidos como clientes das agências de controle penal. A estes, é imposto não apenas processos de criminalização em um sentido mais estrito. Ao revés, a criminalização origina uma violação sistemática de direitos fundamentais e abusos. Ana Luiza Pinheiro Flauzina diz que o entendimento é de que o sistema penal, operando à margem da legalidade, tem como produto a morte[5]. Traz, ainda, a frase de Zaffaroni, “os órgãos do sistema penal exercem seu poder para controlar um marco social cujo signo é a morte em massa”.
Ainda assim, parece predominar o entendimento de que as operações policiais de combate às drogas são soluções eficazes para os problemas. Luís Carlos Valois sintetiza isso com maestria “É com orgulho, sentimento de dever cumprido, digno de prêmios, comendas e promoções, que se encarceram pessoas [...] gera respeito e admiração, permitindo o aumento da discricionariedade do policial, pois este ganha o aval necessário para agir como o titular da força e do poder do Estado”[6].
Nesse sentido, compreensível que, de fato, Porto de Galinhas viva, conforme reportado, “dupla lei do silêncio”. Se, de fato, o tráfico traz preocupações, o policiamento está longe de aliviá-las. Pelo contrário, escalam as tensões em regiões ocupadas por uma população majoritariamente de baixa renda e preta sobre a qual as forças policiais, e demais órgãos de controle, são encorajados, em nome do combate ao crime, a perpetrar todo e qualquer tipo de ilegalidade. As mortes, assim, avolumam-se. Longe de resolver o problema, a polícia militar serviu à finalidade precípua de, como braço armado do Estado, assassinar Heloysa.
Segurança pública para quem?
Problematizar operações policiais, entretanto, é apenas uma pequena margem do problema que se põe na política criminal brasileira. Há problemas na criminalização primária, no Judiciário, na política de segurança pública, no sistema penitenciário, etc.
Daí surge a importância de refletir sobre a segurança pública. Fato interessante é quando Carolina Costa Ferreira nos traz uma análise compreensiva de como a política criminal no Brasil não se baseia em dados. Baseia-se, na verdade, em casos episódicos e em pressões midiáticas[7]. Por outras vezes, a irracionalidade nos discursos punitivistas volta-se a ideias equivocadas de aumentos desproporcionais de penas ou imposição de dificuldades à progressão de regime como mecanismos capazes de combater a criminalidade. Por sua vez, normalmente eles apresentam consequências danosas que nem sempre são discutidas, especialmente em direção àqueles que a violência do Estado se faz mais presente.
Entretanto, o que se verifica é que os dados sobre segurança pública no Brasil não melhoram. Ironicamente, diante disso, a insegurança aumenta e mais medidas equivocadas são tomadas em um ciclo que se retroalimenta. O objetivo da coluna, logo, é repensar para quem a segurança pública é feita. Pode parecer um paradigma quase inatingível, mas acreditamos que uma política criminal democrática é possível, e que meios de combater à criminalidade podem ser pensados, se baseados em evidências e levando em consideração a realidade do sistema penal.
Caio Rocha e Pedro Stadtler, 05 de maio de 2022
Integrantes do Além das Grades.
Foto: Redes Sociais/TNH1
Referências Bibliográficas
[1] FERREIRA, Carolina Costa. A política criminal no processo legislativo. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021, p. 29
[2] BATISTA, Nilo. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 37
[3] BRANDÃO, Cláudio. Poder e seletividade: os processos de criminalização na América Latina e os seus impactos na crise do discurso penal. Caderno de Relações Internacionais, Recife, vol. 10, nº 18, jan-jun 2019, 297-319, p. 299-300.
[4] BARATTA, Alessandro. Obsevaciones sobre las funciones de la cárcel en la produccion de las relaciones sociales de desigualdad. Nuevo Foro Penal, n. 15, 1982, p. 740
[5] FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Orientadora: Ela Wiecko Wolkmer de Castilho. 2006. 145 f. Dissertação (Mestrado). Direito, UnB, Brasília, Distrito Federal. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/5117. Acesso em: 16 ago. 2022.
[6] VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2017, p. 182
[7] FERREIRA, Carolina Costa. A política criminal no processo legislativo. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021, p. 135