Feminismo e Cárcere: Uma análise da realidade das mulheres privadas de liberdade e a exclusão dessas no feminismo
Dentro da agenda feminista decolonial, atual e emancipatória, estamos cada vez mais atentas às perspectivas não só de gênero, mas também da desigualdade social, raça e contexto geográfico, dando enfoque às relações concretas e mulheres reais, rompendo com a narrativa do feminismo hegemônico que historicamente tem invisibilizado mulheres pretas, pobres, mães, informalizadas, excluídas do mercado de trabalho e alvo do sistema penal.
O feminismo representa a resistência contra todo o sistema patriarcal, que a princípio molda a conjuntura social a partir do sistema colonial e permanece até hoje. Dentro desse parâmetro, desde o século XIX há reivindicações de mulheres que se opõem e resistem à hierarquização de gênero. Porém, vale lembrar que as lutas feministas não tangem somente as
opressões do que é ser mulher na sociedade patriarcal, mas também atrela-se aos elementos da classe e da raça.
Desse modo, é importante destacar que o feminismo do século XXI apresenta vários desdobramentos que estão diretamente relacionados às suas vivências pessoais e a oportunidade ou não de uma vida digna. Por isso, é crucial compreender a questão sob a ótica do recorte de raça e classe, pois serve como uma ‘’mola’’ na sociedade patriarcal. Uma mulher preta ou pobre vai sofrer mais determinações, já que são adicionadas às opressões. Isso se agrava quando a mulher é preta e pobre, porque a mesma apresenta os três recortes de opressão na sociedade patriarcal.
Além disso, o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias focado em mulheres – INFOPEN Mulheres – mostra que o Brasil teve um aumento de 455% na taxa de aprisionamento feminino entre 2000 e 2016, crescimento exponencial que foi consequência direta da Lei de Drogas. O tráfico é a principal razão para o encarceramento de mulheres no Brasil, cuja taxa já englobava 62% delas em 2016 (BRASIL, 2018).
Os dados da segunda edição do INFOPEN Mulheres (BRASIL, 2018) mostraram que a maior parte das encarceradas são negras, e com baixo grau de escolaridade, 62% destas são negras, a maioria sem escolaridade completa. De acordo com a mais recente edição do World Female Imprisonment List, o Brasil é o quarto país no mundo em número de mulheres encarceradas, atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia.
Um fator importante a mencionar é que muitas mulheres que entram na criminalidade, geralmente, exercem uma posição subalterna. Ou seja, não são isoladamente responsáveis pelo cometimento do crime. Tal fato pode ser observado em mulheres atreladas ao crime de tráfico de drogas, pois grande parte delas exerce as funções de “mula” (carrega consigo a droga), “vapor” (vende) ou “vigia” (observa quem entra no morro), trabalhando para outra pessoa (SOUZA, 2006). Geralmente, essa pessoa para quem essas mulheres trabalham são seus próprios companheiros. Aqui, entram questões sobre dependência emocional e submissão feminina. Por isso, a discussão do feminismo é importante em âmbitos como o sistema prisional, visto que a emancipação das mulheres ainda não chega nesses ambientes.
Analisando por uma perspectiva macro, é imprescindível afirmar que o meio ao qual se acessa o feminismo ainda é classista - e sobretudo, acadêmico-, a discussão não é feita em comunidades e escolas, se restringindo a um lugar, em que é difícil acessar. A universidade, mesmo após a Lei das Cotas, ainda é dominada pela classe alta - que engloba um feminismo liberal, em que basta estudar para ser uma grande médica ou juíza, não observando a raça e a classe. Soma-se a isso a linguagem densa de produções científicas feministas, como é o caso da autora Judith Butler.
Diante disso, o feminismo deve afirmar que as mulheres são heroínas da própria história, mas como se reduz a mulheres brancas e ricas? Se está na academia? Se não chega a comunidade? Se não pensar em mulheres privadas de liberdade?
A luta por direito a tratamento igualitário não se esgota no artigo 5° da Constituição de 1988 quando é estabelecido que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. Muito pelo contrário: mitigar as opressões de gênero depende de ações concretas para garantir moradia, alimentação e trabalho digno para todas sem que nenhuma precise, para isso, se sujeitar a violência.
Por isso, buscamos construir de forma conjunta um feminismo descolonialista, que propõe uma mudança de narrativa no feminismo hegemônico, e dá enfoque nas relações derivadas de classe, geopolítica, gênero, sexualidade e raça, num esforço para desconstruir a colonialidade discursiva do saber.
Amanda Vitória
Discente de Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco e membra do Além das Grades
Foto: LAB Procomum - Instituto Procomum
Referências Bibliográficas
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPEN Mulheres. 2ª ed. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública, mai. 2018. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-mulheres/infopenmulheres_arte_07-0318.pdf.
SOUZA, Simone Brandão. Criminalidade Feminina: trajetórias e confluências na fala de presas do Talavera Bruce. Revista Democracia Viva, [S.l.], nº 33, p. 10-16, 2006. Disponível em: http://www.observatoriodeseguranca.org/files/dv33_artigo2.pdf. Acesso em: 30 jul. 2020.
World Female Imprisonment List, 4ª ed. Acesso em: https://www.prisonstudies.org/news/world-female-imprisonment-list-fourth-edition